29 de agosto de 2004

A verdade cristalina dos rios poluídos

Os rios portugueses são os mais poluídos da Europa

Texto de Katia Catulo in A Capital 28/8/2004

Dúvidas não restam quanto à qualidade das águas que correm nos rios portugueses. A Comissão Europeia não hesita, aliás, em classificar os cursos de água de Portugal e de Espanha como os piores da Europa dos Quinze. Não é coisa que os nossos governantes não soubessem. Basta passar os olhos pela classificação do Instituto Nacional da Água (Inag) para concluir que não existe nenhum troço de rio monitorizado sem indícios de poluição. No total, só 18 ramais têm "níveis de poluição fracos". Os outros 18 apresentam situações de "extrema poluição", sobretudo nas ribeiras do Oeste e em rios do Alentejo. Significa isto que 70 por cento das vias fluviais apresentam fortes problemas de contaminação. No que toca a culpas, todos são responsáveis. Mas quem quiser encontrar o maior prevaricador pode apontar o dedo ao sector industrial. A poluição provocada pelas unidades fabris é cerca de 12 por cento superior à que é causada pelo sector doméstico. Deputados, governantes, autarcas, ambientalistas, todos sabem quem são os transgressores. Ou pelo menos deveriam saber. No Plano Nacional da Água (PNA), aprovado em 2001 - sete anos após ter sido mandado elaborar -, a verdade é cristalina como a água. Só não vê quem não quer. No inventário feito no âmbito do PNA, apurou-se que das 4731 unidades industriais existentes no país, 58 por cento fazem descargas de esgotos para o rio sem qualquer tratamento. Os casos mais alarmantes ocorrem na região norte. Mais de 90 por cento das indústrias não fazem qualquer purificação dos seus esgotos que desaguam nas bacias de Cávado, Ave e Leça. Entre os rios portugueses, o Ave é o mais agredido. Recebe os esgotos não tratados de 397 empresas - 132 de metalurgia, 102 de fábricas de máquinas e equipamentos e 93 do sector têxtil. No segundo lugar deste ranking está o Leça com 117 empresas metalúrgicas e metalomecânicas, 95 de fabricação de máquinas e 39 de indústrias têxteis. Segue-se o Douro com 146 e o Guadiana com 108 unidades industriais alimentares e de bebidas a não tratarem os seus esgotos. O Tejo ocupa o quinto lugar com 99 empresas metalúrgicas a transgredir normas ambientais, e o Cávado a última posição com 35 empresas a despejar os esgotos não tratados para as águas deste rio. Quanto aos sectores que mais poluem, as indústrias alimentares e de bebidas estão no topo das infractoras, com 763 empresas sem depuração de esgotos. As 596 fábricas metalúrgicas e metalomecânicas que ignoram as normas ambientais fazem este sector o segundo mais desrespeitador. Logo abaixo estão as fábricas de máquinas e equipamentos, com três centenas de empresas, e os têxteis, com 202 unidades a devolver aos rios as águas sem nenhum tratamento. Perante este desastre ecológico, o Tejo é o rio menos afectado pela poluição das indústrias. Mesmo assim ainda tem uma em cada três empresas sem tratamento de esgotos. DENÚNCIAS. As agressões que a indústria exerce sobre os rios é visível nem que seja pelo número de denúncias que chega ao Serviço Especializado na Protecção do Ambiente e Natureza (SEPNA). A unidade especializada nos crimes ambientais da GNR, mostra que, só até Maio de 2004, foram detectadas mais de 4300 infracções contra a natureza. Deste número, 2023 transgressões dizem respeito a deposição de lixo e de descargas de esgotos e resíduos. A poluição das águas conduziu ao levantamento de 389 processos de infracção. Empresas e sectores em peso a poluir impunemente, descargas de poluentes feitas a um ritmo quase diário, fiscalização inerte do Estado, saneamento básico que ainda deixa de fora cerca de 13 por cento da população, tudo isto acontece todos os dias. Por que é que Portugal, o Estado-membro menos industrializado dos Quinze, é, no entanto, o mais poluidor? Responder a esta questão implica falar de política de ambiente, algo que demorou a chegar a este país. Basta recordar que a criação do Ministério do Ambiente surge só em 1990. Até aí nunca teve ministério autónomo e com nome próprio. Aliás, nos 30 anos de democracia, apenas um ministro com esta pasta - a socialista Elisa Ferreira - conseguiu cumprir os quatro anos da legislatura. Só nos últimos dois anos passaram quatro responsáveis por este ministério. A descontinuidade e os consequentes sobressaltos na política ambiental explicam em grande parte porque é que os prevaricadores não encontram obstáculos para continuar a poluir. O futuro próximo também não é animador, defende José Alho, da Liga para a Protecção da Natureza (LPN). O recém-empossado Executivo de Santana Lopes tem dois ministérios cuja divisão de competências não é distinta, defende o ambientalista. Luís Nobre Guedes tem a pasta do Ambiente e Ordenamento de Território e José Luís Arnaut ocupa o Ministério das Cidades: "Depois de ler o programa de Governo fiquei com a convicção de que há áreas de sobreposição clara". Ao analisar a lei da água, o dirigente da Liga para a Protecção da Natureza diz nem conseguir perceber qual vai ser a entidade ou autoridade gestora das bacias hidrográficas: "Quem é responsável por o quê é uma questão nebulosa, e isso cria um impasse institucional com gravíssimas consequências para o ambiente." COBARDIA. Mais alarmante do que isso é a falta de coragem política dos sucessivos governos e ministros, alerta José Alho. Um princípio tão básico como o do poluidor--pagador e do utilizador-pagador, que tantas vezes foi prometido está esquecido na gaveta. A sua simples aplicação poderia ser um mecanismo de obtenção de receitas para investir no ambiente, além de exercer o controlo e a penalização dos transgressores. Quem salva então as águas portuguesas? Submerso neste rio de incertezas, só resta esperar pela salvação da Comissão Europeia. Impor a homogeneidade dos padrões de qualidade entre os estados-membros até 2015 é a meta da directiva-quadro da água. Perante a lista de agressões ambientais é justo questionar sobre a capacidade do país em alterar este estado de coisas. Portugal enviou este mês para a Comissão Europeia uma lista provisória de rios, lagos ou estuários que as autoridades consideram estar em bom ou excelente estado. A avaliação é no mínimo duvidosa, alerta a Liga para a Protecção da Natureza, porque, afinal, todos os lagos considerados em bom estado são barragens. Surpreendentemente, na listagem entregue à comissão surge a Barragem de Castelo de Bode que, de acordo com todos os ambientalistas, apresenta graves problemas na qualidade de água. Portugal está a léguas de distância dos 15 países da União Europeia. A nova lei da água portuguesa deveria ter transposto a lei europeia para o sector em Dezembro do ano passado, mas esta passagem tem vindo a ser atrasada. A nova lei-quadro cria uma autoridade nacional da água e cinco administrações de recursos hídricos e retira às ex-direcções regionais do ambiente a fiscalização da qualidade de água, que passa a ser feita pelo Inag. A legislação começou a ser alterada em 2001, quando o socialista José Sócrates era ministro do Ambiente. No fim da sua governação apresentou uma versão final do texto que acabou por ser alterada pelo Governo da maioria PSD-CDS/PP. À força das directivas da Comunidade Europeia, Portugal terá de suplantar-se para conseguir alcançar os níveis de qualidade das águas dos restantes estados da UE. Poder-se-ia pensar que já leva uma ligeira vantagem a partir do momento em que se concluiu o Plano Nacional da Água. O documento é, segundo os ambientalistas, o melhor manual para se detectar e resolver os problemas que atravessam os rios nacionais. Acontece, porém, que tendo sido aprovado há três anos "nenhuma das medidas indicadas no PNA foram ainda implementas", denuncia o dirigente da LPN.

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